sábado, março 10, 2007

A MOCINHA CEGA - JOSÉ NOCODEMOS



A mocinha cega


TRANSCRITO DO JORNAL DE FATO -COLUNA OUTRAS PALAVRAS EM 10/03/2007

AUTOR: JOSÉ NICODEMOS

Poucas vezes na vida, ou nunca antes, tive a sensação, como hoje, de que a vida vale a pena ser vivida em qualquer circunstância. Não odeio a vida, como do velho Machado de Assis disse o crítico literário Álvaro Lins, mas também não a encaro com tanta simpatia. Exatamente por isto, pela minha visão de mundo, certo já conhecida do leitor, e visão de mundo que tem a minha idade, não acho razão para se viver apenas por viver.

A vida, em si mesma, é uma coisa insuportável, penso eu que pelo determinismo da sua origem, por efeito da atração e repulsão determinando os elementos químicos, nada portanto que corresponda a uma vontade inteligente oculta na complexificação do universo. E o homem, dotado de inteligência, tem procurado através dos séculos escapar do tédio essencial à existência inventando uma finalidade metafísica, que não resiste à razão. No fundo, e nada mais nem menos, um mecanismo de defesa.

Mas deu-se isto comigo, ainda agora. Uma mocinha cega, seus 13, 15 anos, puxada pela mão por um menino, que me disse ser seu irmão, parou à minha porta a pedir um auxílio. Fiquei espantado com o ar de alegria, de satisfação com a vida como que lhe enchendo a fisionomia da visão de algum - como direi? - paraíso. Uma chuvinha fina, convidei-a logo a entrar e ficamos a conversar, eu ainda espantado com sua alegria de viver, os seus olhos sem luz como se vissem não só o mundo em redor, mas até muito além.

Quando eu menos esperava, qualquer coisa assim como se tivesse sido enviada, misteriosamente, para o meu convencimento em face da importância de viver, ela, num riso como iluminado, disse, quase exclamando: "A vida é bonita". Aí, senti-me como de quatro: não me foi dado entender como uma criatura, vistas cegas, ainda mais em estado de pobreza total, poderia arrancar de dentro do peito essas palavras, que ainda não sei a que correspondem.

E fiquei-me a refletir sobre o mistério da vida como sendo alguma coisa além do assombro biológico, talvez o que antevê, ou sonha a metafísica. Está claro que não me convencem os postulados da religião, e qualquer religião, mas não nego uma coisa: que as palavras direi misteriosas daquela mocinha cega, pelo menos, deixaram no meu mais de dentro um desejo, do tamanho da eternidade, de que não seja a vida apenas um assombro biológico.

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