domingo, janeiro 27, 2008

EU JÁ ROUBEI MANGA

EU JÁ ROUBEI MANGA
Marcos Bezerra
Jornalista - marcos.bezerra@redeintertv.com.br
 
Não causou nem um tico da comoção de outros casos; como o do garoto João Hélio, por exemplo. Nem de longe foi tão cruel, é verdade, mas teve o agravante de - diferente dos assaltantes do Rio de Janeiro, que apesar do crime bárbaro que cometeram, não premeditaram sair arrastando o garoto pelas ruas da cidade - os assassinos terem tido a intenção de matar e ainda tentar ocultar o cadáver, ou melhor, o moribundo. Segundo a polícia o garoto Kessi Jones Queiroz da Silva ainda estava com vida quando foi socorrido pelo Samu. Com um tiro na cabeça, acabou não resistindo e morreu a caminho do hospital.
Kessi, para quem não tomou conhecimento do assunto, era um paraibano de nove anos de idade, morador da cidade de Alagoa Nova, na região do brejo; notadamente conhecida pela fertilidade de suas terras e pela produção de frutas. Já passei por lá, e fiquei imaginando porque o Rio Grande do Norte não foi aquinhoado pela mãe natureza com um brejo igual. Tão grande que abrange oito municípios.
Pois foi neste lugar, produtor e exportados de frutas para os estados vizinhos, que o pequeno Kessi encontrou a morte. Para usar a linguagem jurídica, por um motivo fútil; mas, na linguagem de quem acompanha e tenta entender este mundo cão, o "encontro" se deu mesmo pela estupidez característica da raça humana.
O crime dele: estava surrupiando mangas de um sítio. Dois irmãos e um outro amiguinho - não é assim que tratamos os amigos dos nossos filhos? - da mesma faixa etária, conseguiram fugir. Ele não. Ficou ferido, debaixo da mangueira, agonizando. Imagino... O cheiro dos frutos saborosos a impregnar suas narinas, misturando-se ao cheiro do próprio sangue; depois ao cheiro do suor dos assassinos, que, no lugar de tentar prestar socorro à vitima, acharam por bem enterrá-la num matagal próximo. O cheiro da terra úmida do brejo... Nem perceberam que a criança ainda estava viva. O sepultamento só não se deu porque a polícia chegou antes, acionada pelo pai da criança, mas aí já era tarde.
O dono da propriedade, Jailson Rodrigues Pereira de Souza, conhecido como Galego do Posto, foi preso com um companheiro. Um terceiro homem, que estava na cena do crime, conseguiu fugir.
Três homens para atacar quatro crianças, entre oito e doze anos, por causa de algumas frutas. Isso num período em que os frondosos pés de manga espada costumam fazer lama do tanto que produzem.
Balas. Uma reação desproporcional; um grito teria resolvido tudo. Resolveu comigo.
Sim, eu também já roubei mangas. E corri ao menor sinal do dono do sítio. Era parte da infância de menino criado em cidade pequena; como era parte da infância do pequeno Kessi e como, é quase certo, deve ter sido também parte da infância do homem que atirou nele.
Qual menino, numa região de fartura restrita aos anos de bom inverno, como é o sertão, ia resistir a uma fruta madura no pé? Nenhum de nós resistia. Mas não lembro, naquele tempo e até esta semana, de alguma criança que tenha sido assassinada pelo dono do pomar. No máximo, o que ouvíamos, era a ameaça de um tiro de sal grosso no lombo de quem se atrevesse a pular as cercas de pedra ou arame que dividiam os sítios - nada que fosse obstáculo para a ação de garotos dispostos e ligeiros. Na verdade não tenho notícia nem mesmo de alguém que tenha sido ferido com essa estranha munição. A história plantada na cabeça dos meninos era de que a ferida ardia muito.
O tal Galego do Posto usou munição de verdade e ainda deu vários tiros na direção das crianças. Depois justificou para a polícia: "pensava que eram ladrões". Sim, ladrões de pouco mais de um metro de altura. E o ladrão que tombou não mereceria outro destino que não uma cova rasa em algum canto escondido do sítio... Apesar de estar vivo. A primeira notícia que li sobre o caso dava conta que o garoto, baleado na tarde de quarta-feira, só teria sido socorrido na madrugada da quinta, quase doze horas após o acontecido. Mais uma vez custo a acreditar na natureza humana.
Outro dia foi João Hélio, arrastado no Rio de Janeiro. Outro dia foi Dênis dos Santos, 13 anos, espancado e morto por alunos ainda em formação da Polícia Militar de Pernambuco, durante o desfile de um bloco carnavalesco no bairro do Cordeiro, em Recife. Mais uns dias e quem sabe o que será?
A foto de Kessi Jones, um garotinho mestiço, não estampou a primeira página de nenhum jornal, a não ser na Paraíba. A notícia também não teve desdobramentos; nem mesmo no único site aonde o crime chegou a ser incluído na página inicial. O que acontece em Alagoa Nova não vai nunca despertar a indignação da sociedade. Desperta a minha.
E se acontecer de alguém simpático à defesa da propriedade decretar que o menino seria um candidato a criminoso no futuro - um marginalzinho -, permita-me discordar. Fosse assim, eu e boa parte dos que dividiram comigo os bons dias da infância, também seríamos. Não que a gente fizesse isso com freqüência, mas qual criança nunca surrupiou uma fruta no pé?
A Kessi Jones, minha oração; e que o cheiro do céu seja tão gostoso quanto o de uma manga madura.
 


Abra sua conta no Yahoo! Mail, o único sem limite de espaço para armazenamento!

Nenhum comentário: