quinta-feira, junho 14, 2007

O COXO- Clauder Arcanjo

O coxo

Clauder Arcanjo

"Quem é coxo parte mais cedo."
(Dito popular)

A casa em sono, o curral entregue ao silêncio da noite e ao ruminar dos
bichos, e o ronco imperador nas redes dos quartos. Antes da nesga da
manhã, o arraste dos chinelos na mais ao fundo. Na escuridão, um pequeno
ser, com os passos irregulares, à procura da tramela da porta. Em
apalpadelas, na busca da tranca.
O rangido da porta, e a barra de vento frio. O arrepio, pela ventania e
devido à viagem nova. Acalcou seus teréns no fundo da maleta
desconjuntada. Presente da Bá, preta velha e boa, que sempre lhe destinava
o resto do jantar dos senhores da casa-grande.
Na soleira, virou-se, fitando a cumeeira alta e a imagem de Jesus, Maria,
José, esta sobre a portada de entrada. Fez o pelo-sinal, sem dar por si,
ele que nunca fora batizado. "Tu não é filho de Cristo, peste!..."; a
raiva de Zé Grandão, quando na volta dos porres no vilarejo de Licânia.
Sentiu um acocho no peito, mistura de medo e de saudade.
— Já vou!... — como se alguém estivesse a se despedir dele. Apenas o
burrico Xexéu fez um zurro de troça.
A entrada na mata fechada, o corpo sendo molhado pelo orvalho dos
marmeleiros. Pelos olhos, as lembranças de tudo. Os cuidados de Bá, a
tentativa de brincar com os filhos de Bastião e Gracinha, o esconderijo no
serrote, os achincalhes do caboclo Zé Grandão, a amizade apenas com Bá, o
canário Príncipe, e o burrico Xexéu.
Quando da decisão pela venda do seu canário, a defesa arrevesada. E a mão
forte de Bastião a cortar-lhe os argumentos, bofete de adormecer lábios e
boca.
— Fecha essa tramela, Nonatinho, seu coxo filho duma égua!...
A corrida para o cercado, as pernas zambetas a se ferirem nos muçambês. O
espinho do tapa a entrar no seu juízo, cada vez mais fundo. "Fecha essa
tramela... seu coxo....". E a risadaria no alpendre.
De noite, o sono assolado pela mão grande. Lapadas contínuas na cara, mal
ele se achegava ao cochilo. De repente, amedrontado, a decisão: "Vou-me
embora. Quem é coxo parte mais cedo!".
Agora, quando o sol aponta na barra, e os bichos saúdam o novo dia,
Nonatinho tem quase certeza de ouvir o choro de Bá, a lamentar a fugida da
cria.
Na copa da carnaubeira frondosa, um canário-da-terra em trinado, festivo,
e uma lágrima, cambaia, surge na cacimba dos olhos do pequeno retirante.

Clauder Arcanjo — Professor
clauder@pedagogiadagestao.com.br


Texto publicado no jornal Gazeta do Oeste (Mossoró-RN), caderno Expressão,
espaço Questão de Prosa, edição de 11 de junho de 2007.


Novo Yahoo! Cadê? - Experimente uma nova busca.

Nenhum comentário: