terça-feira, janeiro 09, 2007

PELO CORPO TAMBÉM SE APRENDE A LER

PELO CORPO TAMBÉM SE APRENDE A LER

Transcrito por William Pereira da Silva

Este belíssimo texto foi extraído do JORNAL DO PROFESSOR DE 1º GRAU, 1988, possivelmente editado pelo MEC. Considero uma jóia rara por demonstrar que depois de dezoito anos a escola continua a mesma tartaruga citada ao final do texto.

João Batista Freire

A criança é uma liberdade se construindo, mas o adulto não é uma liberdade acabada. Nem poderia sê-lo. Pelo menos poderia ter mais cara de liberdade. Talvez sua infância tenha sido pouca.
Falo de liberdade e me vêem imagens. Vejo uma rua, garotos correndo, meninas pulando corda, gritos, gargalhadas... Ah, a rua! Só falam de tirar as crianças da rua. Para sempre? Eu sonho com as ruas cheias delas. È perigoso, dizem: violência, drogas... E nós, adultos, quem nos livrará do perigo urbano? De quem serão as ruas? Da policia e dos bandidos? Vejo por outro ângulo: um dia devolver à rua as crianças, ou devolver à criança as ruas; ficariam ambas, muito mais alegres.
Escolas também podem ser tristes, até perigosas. Na escola de dia inteiro, que a violência que assisto me faz engolir, é preciso confiar plenamente no estado. Eu não me arriscaria. A escola de dia inteiro é um paliativo ou é definitiva? Não será suficiente para o Estado, que sofre de insônia, mas sonha com um Admirável Mundo Novo? Alunos ou clones?
Outros tipos de imagens, com um pouco de esforço, agente pode formar. Imagens de crianças correndo, pulando, brigando até, dentro da escola. Mas, onde? Na sala não, que é lugar de silencio. No pátio? No pátio sim, na hora do recreio, na hora de recriar tudo de novo o que o Criador já criou. As crianças brincam de criar de novo, do jeito de fantasia. E na aula de Educação Física? Afinal, é o espaço da liberdade do corpo, do gesto, do som. Mas na aula de Educação Física também não pode, porque aula é aula e não lugar de se mexer, de fazer bagunça.
Mas falamos um pouco de pedagogia: Pelo ouvido também se aprende, desde que existam sons. Quem aprende tem de ser provocado. Nada provoca mais a criança que o movimento, a luz, o som, as cores. Pelo salto, como pelo abraço ou a brincadeira, também se aprende. Concordo que o estudo, tanto quanto o trabalho, é coisa séria. Coisa séria, não sisuda.
Abaixo a metodologia do traseiro. Há séculos que a escola, essa velha senhora, insiste na tese de que a criança tem de ficar sentada o tempo todo para aprender. Alias para aprender o que? Essas coisas bonitas que a gente vai criando no pensamento é porque fica o tempo todo sentado, fazendo lição? E aquela vida lá fora, do barulho, da confusão, é outra vida, que não faria parte dessa mágica de aprender?
Um dia decretaram que meu filho, aliás, todos os nossos filhos, já não aprenderiam com o corpo inteiro. Aos sete anos de idade eles iriam para a terra da imobilidade, para se preparar para a vida. Seriam três a quatro horas por dia presos a pequenas carteiras, durante anos sem fim. Mas, o que é que eles fariam com tudo aquilo que aprendiam por aí, com os amigos, o pai, a mãe, os brinquedos, até com a televisão? O que fazer com os gritos, o choro, o sofrimento físico e o riso? È preciso fazer uma desinfecção de vida para aprender português e matemática?
Pelo corpo também se aprende a ler. Porque é tudo mentira que a gente só aprende se ficar quietinha, sentada na carteira sem falar, sem ver, sem ouvir. Criança é movimento, é ação corporal, muito mais que reflexão. Não há pensamento que se forme que não passe pelo gesto. A vara de condão dessa mágica chamada conhecimento é o corpo. È pela ação corporal que a criança conhece o mundo. È a ação corporal que ela transforma em símbolo, em linguagens, em raciocínios. É preciso se mexer, para viver, para aprender, para criar. Os adultos se escandalizam com crianças trancadas em apartamentos, mas não se escandalizam com crianças trancadas em escolas. Está certo que a prisão da carteira é muitas vezes atenuada por umas figuras maravilhosas que a gente chamava de professora e agora chama de tia. Mas, essas professoras seriam tão mais professoras, e as tias tão mais tias se não participassem do complô contra o direito humano da criança de viver seu corpo! Bem na hora em que ela começa a deixar de ser o centro, quando começa a ser sociedade, a sociedade começa a confiná-la em espaços individuais_ o adulto que não suporta se mexer, “educando” a criança que não suporta ficar parada. Não haveria uma outra relação possível? Não haveria uma outra forma de educar? Há pessoas que defendem uma educação, inclusive uma Educação Física, feia, chata e triste. Não me incluo entre elas. Nunca esqueci da minha primeira professora, mas também não esqueci da alegria que sentia quando batia o sinal da saída. Será que a escola não tem inveja da hora do recreio? Será que não sente inveja da alegria louca da criança quando bate o sinal? Sinto dizer, e é mais para quem gosta de cinema, mas as vezes, acho a escola muito parecida com a Velha Morla, a tartaruga do filme A História Sem Fim.


João Batista Freire é Doutorando em Psicologia Escolar na USP e Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP

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